Bailandesa

O Corona mexeu no meu queijo. Literalmente

Como o Corona mudou a minha vida na Holanda e impactou até no meu queijo – em todos os sentidos.

Comprei meu primeiro queijo holandês numa feira em Utrecht. Não era a minha primeira viagem à Holanda, mas era o meu test drive pra ver se me adaptaria aquela terra pequena, plana, fria e molhada. O então namorado me levou à feira de rua. Um programa perfeito pro meus status de turista com intenções de virar local. 

A feira de rua é um ótimo programa pra conhecer a cultural local (c)Bailandesa.nk

 

O encontro com o queijo e com o queijeiro

Quando cheguei na barraca do queijo, um cara simpático com o cabelo salpicado pela neve da idade me atendeu. Ele era um verdadeiro narrador de jóquei. As palavras galopavam na sua boca num Dunglish perfeito. Enquanto isso, eu tentava acompanhar suas explicações com uma simpatia de turista deslumbrada.

Ele explicava os diversos tipos de queijo, a maturação de cada um e eu os provava obedientemente. Enquanto tentava reconhecer as diferenças. Eu estava apaixonada. Não, não pelo queijeiro, mas pela ideia de estar apaixonada de novo e quem sabe começar uma vida completamente nova.

O Corona mexeu no meu queijo literal e metafórico (c)Bailandesa.nl

À medida que provava os queijos, aumentava ainda mais a minha vontade de mudar de vez para aquele país. Como também aumentava a conta com o queijeiro e o volume da minha sacola de compras. Resultado: voltei para o Brasil com a cabeça cheia de certezas, uma mala lotada de queijos contrabandeados e um coração cheio de saudade.

 

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Encontrando meu queijo na Holanda

Quando mudei pra Holanda, apelidei o país de Disney do Queijo. E apesar de não ter nenhuma relação como apelido, não pude deixar de lembrar o livro de Spencer Johnson, “Quem Mexeu no Meu Queijo”. Na história do livro, o queijo é uma metáfora para aquilo que lhe faz feliz e dá sentido a sua vida. Os personagens são dois ratos e dois duendes que, cada um à sua maneira, enfrentam as mudanças causadas pelo sumiço do estoque de queijo. 

Aos pouscos fui me adaptando ao estilo holandês de viver – ©Bailandesa

Emigrar é uma das mudanças mais radicais que podem acontecer na vida de alguém e quando atravessei o oceano, deixei o meu estoque de queijo no Brasil. Assim, ao chegar na Holanda, tive que reencontrar o meu queijo metafórico, mas também reencontrei o queijeiro e as suas iguarias laticínias. Demorou, mas achei trabalho, aprendi a língua, fiz amigos e reabasteci as prateleiras da vida.

 

Cliente Fiel

Eu trabalhava em Utrecht e, todas as quarta-feiras, no intervalo do almoço, esticava as pernas, treinava holandês e pagava uma visita ao velho amigo queijeiro. A cada visita na sua barraca, sempre voltava pra casa com meus selinhos para colar na cartela de fidelidade. Eu era uma cliente fiel. Ou pelo menos colecionava os selos com assiduidade de um calouro no primeiro ano de universidade. Já as cartelas, se acumulavam numa gaveta de inutilidades na cozinha como ideias esquecidas num caderno que não sabem se e quando irão virar realidade.

O tempo passou para mim e para o queijeiro (c)Angeliek De Jonge

A cada compra de queijo, via chegar novos produtos na feira, novas línguas, novas nacionalidades. Vi a praça se transformar e até o velho e mofado shopping ganhou uma roupa nova. Tudo mudou. Com exceção do endereço do meu queijeiro. 

Hoje ele tem a cabeça completamente tomada pelos cabelos brancos, mas o seu inglês continua o mesmo. Sorte que agora nos comunicamos em holandês. A verdade é que vi as mudanças que aconteceram em mim, na cidade e na feira. Só não vi o tempo passar.

 

O Corona mexeu no meu queijo

O ano de 2020 chegou trazendo o Corona e levando o meu emprego no setor de turismo. A segunda geração de queijeiros já está assumindo os negócios. Quanto a mim, vejo que o meu estoque de queijo sumiu novamente. Mas não sou a única. A pandemia mexeu no queijo da humanidade e somos ratos e duendes descobrindo novos caminhos e “estoques de queijo”. Ao mesmo tempo em que nos adaptamos à uma realidade de isolamento social, sem viagens, sem abraços e com os rostos e sorrisos cobertos.

Na espera da vacina e louca para abraçar amigos e família, passo a maior parte do dia em casa, escrevendo e olhando as folhas do jardim que mudam de cor, até se cansarem do meu olhar e se jogarem dos galhos das árvores. 

As minhas visitas ao queijeiro cessaram. O queijo artesanal foi substituído pelo do supermercado. Do meu queijeiro restou um cortador de queijo que ganhei numa das poucas cartelas que troquei. Quanto as outras cartelas, como eu, aguardam a vida voltar a novo normal para saírem da gaveta.

 

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