Na infância, as noites começavam com suas histórias, acompanhadas de suas adoráveis e desafinadas canções de ninar. No café da manhã me enchia de manias; retirar as sementes da banana da terra cozida era apenas uma delas. Pela nossa semelhança, carrego até hoje a versão feminina do seu apelido de família
Companheiro, juntava suas lágrimas às minhas assistindo filmes antigos e assim inundávamos o sofá e as nossas tardes. Na adolescência, curou minhas ressacas sem nunca fazer um só sermão e quando bem cedo arrumei um namorado, me convidou a trazê-lo para a porta de nossa casa. Enfim, era o pai liberal que fazia inveja às colegas de colégio e as deixava estupefatas ao conversar abertamente sobre os tais assuntos polêmicos. Mas não se enganem: tinha lá seus arroubos de pai de donzela.
Se me ensinou a me emocionar com a música em toda a sua diversidade e plenitude, nunca protestou diante dos meus berros e xingamentos no estádio de futebol. Entre apostas com seus amigos, um amendoim cozido e um rolete de cana, o adversário, o pobre do juiz e a mãe dele sempre levaram desaforos pra casa diante de um pai orgulhoso.
No meio da sua responsável indisciplina e infindável compreensão, conseguiu construir uma sólida família no exato tamanho da aconchegante bagunça. Cercado por mulheres, viveu sempre em minoria. Em casa eram quatro, sem contar a cadela -como sempre ressaltava. Dizia sentir-se como um diretor de internato feminino. Como se não bastasse, ainda convivia com as suas incontáveis pacientes. Dedicava a cada uma delas paciência e atenção inesgotáveis; mesmo quando ligavam às 3 da manhã pedindo instruções sobre a pílula anticoncepcional que havia caído no ralo da pia.
Fez da vida a sua profissão e, enquanto ajudava mulheres a realizar o sonho de ser mãe, fazia nascer em mim a certeza de que tudo é possível, desde que nunca se pare de sonhar e de compreender quem está a seu lado.
Por essa e muitas outras é que não, não sentirei saudades desse ano que se foi. O ano de 2011 abre as portas, mas dessa vez não será a mesma coisa. Não sigo sozinha, eu sei. Mas sim, sob uma luz diferente. Passo a passo, caminho agora guiada pela chama da saudade e da memória.