O resultado das eleições holandesas é a concretização de um temor que tenho há muitos anos.
Eu solicitei a minha nacionalidade holandesa em 2009. Morava somente há 3 anos no país e poderia esperar mais para tomar essa decisão. Mas o clima do país estava mudando e resolvi acelerar o processo. A extrema direita já costurava sua colcha de patchwork com retalhos de intolerância, populismo e discriminação.
O resultado das eleições holandesas surpreende com vitória massiva da extrema direita Wikipedia: Jeroen van der Meyde/Tweede Kamer
14 anos depois, vejo que meu maior temor se tornou realidade. A extrema direita entrou de trator no parlamento holandês nas últimas eleições. O PVV, um partido declaradamente racista, se tornou o maior partido da Holanda. E isso significa que ele lidera as discussões para a formação do novo gabinete. E o pior é que partidos que diziam que nunca formariam um governo com o PVV, já dão sinais que vão deixar os princípios de lado e cogitam participar de um gabinete com Wilders, o líder do PVV.
Leia mais: Tudo o que você precisa saber sobre as eleições na Holanda.
Como chegamos a esse resultado das eleições na Holanda?
Nas eleições provinciais, o BBB, partido do movimento agropecuário, teve uma vitória impressionante. Isso já foi uma resposta da população ao desacreditado gabinete da época. Daí, o gabinete foi implodido por causa do tópico imigração. E essa foi a deixa para o PVV dar uma de Gene Kelly e sapatear na chuva tão constante Holanda. Ou seja, o VVD abriu as cortinas para o PVV brilhar no show de horrores da anti-imigração. Afinal, Wilders sempre foi a referência nesse assunto.
O tema imigração definiiu o resultado das eleições holandesas (c) Sebastiaan ter Brug
Leia também: Quem é quem nas eleições da Holanda
Palavras amenas. Programa radical
Mark Rutte, que sempre se recusou a formar um gabinete com o PVV, anunciou a sua saída. Mas a sua substituta, Dilan Yeşilgöz, abriu uma brecha para o PVV durante a campanha, ao dizer que não excluiria nenhum partido. Aí, a boiada passou. Vislumbrou-se a possibilidade do PVV fazer parte do governo. Estrategicamente, Wilders baixou o tom radical e foi seduzindo eleitores do próprio VVD e de outros partidos. É bom deixar claro que ao amenizar as palavras, ele não muda de opinião, nem o programa do seu partido. Só para dar uma ideia, está escrito no programa que o PVV pretende: parar completamente com o asilo aos refugiados, proibir dupla nacionalidade, proibir o uso de véu em prédios públicos, extradição de indocumentados, proibição do Corão, de escolas islâmicas e mesquitas, corte de subsídios para cultura, corte de verbas para combater a mudança climática e por aí vai.
Magma rancoroso
Mas essas mudanças não acontecem de um dia pro outro. Esses movimentos na sociedade são cozidos no sou-vide. Ou seja, em baixa temperatura e por muito tempo. São pratos preparados nos calabouços do ódio. O magma rancoroso vai borbulhando lentamente e vem à tona numa erupção, que parece espontânea, mas que está em processo há muito tempo.
Normalização do absurdo
Lembro que quando cheguei na Holanda, não era de bom tom perguntar de onde você vinha. Soava discriminatório. Como tudo mudou? Em tempos de dificuldade, o lema “farinha pouca meu pirão primeiro” sempre vence. Estamos num momento crítico, com uma guerra no continente, inflação alta e uma polarização crescente. Depois de anos de uma política que fecha os olhos para os desafios socias, anos de definformação que prega que os refugiados são a causa de todos os problemas, a população começa a fechar os olhos para os princípios e abrir o coração pra promessas vazias. Então, chegamos a uma “moral seletiva”, onde racismo, discrimação começam a se tornar aceitáveis. Dessa forma que, aos poucos, os valores vão-se flexibilizando e o que era absurdo, vira o normal. E é assim que o extremismo vai puxando o cobertor e se aconchegando na sociedade.
E agora? O que esperar depois dessa resultado das eleicões da Holanda?
A boa notícia é que o gabinete ainda precisa ser formado. A má é que muitos partidos de direita estão dispostos a trabalhar com ele. Agora é torcer para que o menos pior aconteça. Seja um gabinete não se formar (quase impossível) ou se se formar mas que não dure por muito tempo. O tempo dirá.